Reconciliação
As coisas não estavam fáceis naqueles dias. Fui chutado por atrasar o aluguel do escritório, a mulher casada que andava comendo não me ligava há semanas, a conta no Bar do Ernesto estava atrasada e os boletos vencidos abarrotavam minha quitinete. Para piorar, quando eu ficava estressado, minhas hemorroidas cobravam juros mais altos que os agiotas que me perseguiam.
Quando aquele sujeito me ligou, não restou escolha: tive de atendê-lo a uma mesa no Bar do Ernesto, tendo o Peixoto, garçom no local há décadas, como secretário e o cheiro de fritura e cigarro como moldura daquele cenário idílico. O templo perfeito do meu fracasso e dos bêbados que ali se ancoravam, enquanto as pessoas trabalhavam para manter a sensação de estarem vivas.
A luz difusa daquele seco inverno curitibano produzia sombras longas, especialmente sobre a garrafa de cerveja que ornamentava nossa mesa. Meu interlocutor tinha o rosto vermelho, mais por raiva do que vergonha. A raiva do amante rejeitado.
— A desgraçada me largou para ficar com o marido — falou após esvaziar seu copo de cerveja. Enchi-o novamente.
— Como a conheceu?
— Ariadne era minha aluna.
— Aluna? Professor universitário?
— Não. Sou professor de tênis.
— Deve pegar muita aluna gostosa. Aqueles shortinhos, sainhas rodadas…
— Sempre resisti ao assédio. Eu era casado. Mas não consegui escapar dela. Cara, se você visse as roupas que ela usava… caí nas suas garras. Depois, veio a paixão; parecia um adolescente. Até comprei um anel caríssimo pra ela. Uma espécie de noivado; ela dizia que iria largar o marido…
— Clássico. Perdi a conta de quantas vezes já ouvi isso.
— Acabei me separando. Por causa dela, detetive, larguei um casamento de mais de dez anos. Estava tudo certo, combinado que iríamos ficar juntos. Até aquele dia.
— Até imagino: você descobriu que não era o único amante.
— Errou, detetive. O marido nos pegou no flagra. No quarto deles, na cama deles, com a mulher dele…
— Bem. E imagino que não era raquete e bolas de tênis que a Ariadne segurava…
— Isso mesmo. Foi uma baixaria. Mal tive tempo de puxar as calças e sair correndo. Nunca mais a vi. Só mandou uma mensagem dizendo que nosso caso havia acabado, que estava se reconciliando com o marido. Em seguida, me bloqueou.
— E agora você quer que eu a encontre, para tentar demovê-la de ficar com o cornudo — servi novamente nossos copos, secando a garrafa. Não foi preciso fazer sinal para que Peixoto fizesse a reposição.
— Não quero mais ver a desgraçada — ele bateu com força na mesa, acordando um bêbado que babava sobre o balcão — quero que ela devolva o anel. É uma questão de honra.
— O anel?
— Sim. O anel do nosso compromisso.
A coisa era patética, mas séria. Pior do que o marido traído é o amante renegado. O panaca tinha até uma foto do anel. Não era especialista em joias, mas estava na cara que o sujeito havia ralado muito tênis para comprar aquela peça. Pensando bem, até eu quereria de volta. Afinal, há duas coisas que movem o mundo: dinheiro e boceta. Naquele caso ambos estavam envolvidos.
— Bem, vou falar com ela. Convencê-la a devolver o anel não deverá ser difícil… a gente sempre pode sugerir que algumas pessoas próximas poderão saber das suas puladas de cerca, pai, mãe, vizinhos…
— Chego a ter pesadelos. Vejo ela transando com o marido, com o anel no dedo, me encarando, rindo da minha cara. Vagabunda.
— Fique tranquilo. Irei até o fim do mundo para repor sua perda. — Uma coisa que todo detetive logo aprende é que deve agir como políticos, advogados e religiosos: prometer o Céu e punir com o Inferno, se for o caso.
Acertamos o preço e um adiantamento. Mas, antes de apertarmos as mãos, tomamos mais uma cerveja, agora mais calmos, graças ao efeito conciliador do álcool.
A chuva não dava trégua aos limpadores de para-brisa. O policial mal enxergava a estrada adiante. Pelo menos estava vazia. Ou parecia estar — até que avistou um carro parado no acostamento, faróis apagados. Ao lado, um vulto curvado sobre outro. Seriam duas pessoas? Uma caída, outra socorrendo?
Reduziu a marcha. Quando se aproximou, distinguiu a capa de chuva encharcada do homem. O que jazia no asfalto, porém, ainda era mistério. Parecia o corpo de uma criança. Só ao parar a viatura e descer, sentindo no rosto as gotas frias, insistentes, percebeu que aquilo no chão não era gente.
— Tudo bem por aí? Precisa de ajuda? — O policial sacou sua lanterna, iluminando o ser que parecia rezar sobre o corpo desfalecido.
— Atropelaram o Peralta, moço.
O homem se ergueu com esforço, revelando o corpo ensanguentado e retorcido de um cachorro grande e peludo.
O policial hesitou, a água escorrendo pelo boné. Só então perguntou:
— O que houve?
— Tá morto. O Peralta tá morto — as lágrimas do homem fundiam-se à chuva.
— Foi atropelado?
— Um filho da puta! Meu carro morreu, desci com o Peralta… Aí veio outro carro, do nada, e passou por cima dele. — A voz embargou. — Ficou parado um instante, parecia não saber o que fazer. Quando corri e bati no vidro do caroneiro, fugiram em disparada.
— O senhor mora perto?
— Sim, moro no vilarejo aqui perto.
— Posso lhe dar uma carona.
— Mas o Peralta tem que ir junto! Não vou deixar meu cachorro aqui pra um animal qualquer comer. Era a única companhia que eu tinha.
Recolheram o cachorro e o puseram no porta-malas. Depois, seguiram em silêncio estrada adiante.
— Não percebi que o moço é policial. Estou tão nervoso…
— Tudo bem. Logo chegaremos à sua casa.
— Ainda bem. Já estava ficando com medo daquele assassino que anda atacando as pessoas por aí.
— Estamos caçando esse sujeito. Uma hora a gente o pega.
— Espero que sim, moço. Agora, até passou pela minha cabeça se aquele carro que atropelou o Peralta não era desse desgraçado.
O policial encarou a estrada encharcada à frente.
— Tudo é possível… tudo é possível — repetiu o policial, como se falasse mais para si do que para o homem.
Estacionei meu carro próximo ao prédio onde Ariadne dividia sua linda história de amor com o cornudo do seu marido. Gente abastada. Bom, quem faz aula particular de tênis não deve ser pobre. Paulo Francis dizia que esporte é a alta cultura dos iletrados. Acho que tênis é a alta cultura da burguesia iletrada.
O edifício era muito alto e sua fachada mostrava opulência, fazendo questão de esfregar o dinheiro na cara dos transeuntes. Mas, evidentemente, até no mais elegante dos prédios de Curitiba, nada melhor do que abordar o porteiro da noite. São todos iguais. Sempre têm o rabo preso, especialmente por dormir no trabalho.
Siqueira, como estava escrito em seu crachá torto, era mais do mesmo. Sua gravata, enfeitando o uniforme bem alinhado, não era suficiente para disfarçar seu sono e o inconfundível bafo de cachaça.
— Boa noite, Siqueira — li em voz alta o crachá dele. — Preciso falar com a senhora Ariadne.
— Um momento, por favor — pegou o telefone e interfonou. — Ninguém atende.
Levei a mão ao bolso e estiquei uma nota de cem para ele. A cara antipática virou sorriso, como uma criança que reencontra um brinquedo perdido.
— Qual é, Siqueira. Não precisa disfarçar. Você sabe muito bem que ela não está em casa. Vai homem, desembucha.
Siqueira pigarreou, olhou para os lados e baixou a voz como se estivéssemos sendo observados por fantasmas.
— A senhora Ariadne viajou cedo. Saiu com o marido, malas grandes. Parecia que estavam saindo de férias.
— Férias? Sabe pra onde podem ter ido?
O porteiro não respondeu, apenas encolheu os ombros e ajeitou a gravata torta. Em seguida, estendeu a mão, aguardando mais algum incentivo.
Entreguei mais cem e o porteiro vomitou tudo.
— Bem, a gente não deve ficar falando, mas tinha um moço alto, loiro, muito bronzeado, que às vezes passava por aqui. Há dias não aparece. Não depois que os vizinhos ouviram gritos e discussão tarde da noite…
Siqueira até podia dormir no serviço, mas estava de olho nos moradores. Alto, loiro e bronzeado. A descrição do meu cliente, professor de tênis.
Agradeci e deixei o prédio. Da rua, pude ver Siqueira servindo uma dose de branquinha.
Roberto segurava o volante com força suficiente para arrancá-lo do lugar. Detestava dirigir à noite. Ainda mais com chuva. À sua frente, a estrada deserta e os limpadores que lutavam para dar conta da água que caía sem trégua.
— Não precisa correr, Roberto. Não estamos com pressa.
— Você sabe que odeio dirigir à noite. Quanto mais rápido chegarmos, melhor.
Roberto selecionou um álbum no display digital. Os Ramones explodiram nos alto-falantes.
“Oh, I believe in miracles” — bradava Joey Ramone.
— Pode baixar um pouco o volume? Sabe que não gosto de som alto no carro.
— Preciso me concentrar. A música ajuda.
— Temos que conversar, Roberto. Com a música nesta altura, não tem condições.
Roberto talvez não precisasse se concentrar. Na verdade, ainda tentava entender o rebuliço de emoções e sentimentos que afloraram quando flagrou Ariadne com seu professor de tênis, em pleno ato sexual.
A primeira reação foi expulsar o homem de sua casa e xingar a puta da esposa. Vadia. Na própria cama? Há quanto tempo o traía? A vontade era expulsá-la também — botá-la pelada para fora do apartamento e jogar suas coisas pela janela.
Mas, quando a adrenalina baixou, no silêncio da noite, enquanto Ariadne dormia no quarto contíguo e a insônia não o largava, ele percebeu: na verdade, ficara excitado com a cena. Agora, no banco ao lado, Ariadne girava um anel no dedo, distraída. Lembrou-se de novo: a esposa sendo desejada, tomada por outro. Sempre sofrera com essa tentação suja, mas a mantinha trancada onde não pudesse reencontrar. Agora, a traição real o obrigava a abrir aquela caixa outra vez.
Atingido por uma ereção incontornável, apertou o volante como se esmagasse o próprio desejo. A viagem podia ser reconciliação — ou confissão. Como ela reagiria?
Aqueles pensamentos foram interrompidos por Ariadne.
— Lembra quando assistimos ao filme juntos?
Joey Ramone confessava onde não queria ser enterrado:
“I don't want to be buried in a pet sematary”.
— Sim. Até hoje me arrepio quando lembro da cena do menininho indo em direção à estrada…
— Nossa! Nem me fale. Acho que assistimos ao filme na cabana, não foi?
Ariadne mencionava a cabana, o destino do casal, onde havia transado pela primeira vez, quando ainda estavam no início do namoro. A velha cabana isolada de propriedade da família há décadas. A cabana. O lugar onde tudo começou. O lugar onde tudo voltaria a desmoronar.
Roberto apenas concordou com a cabeça. Apertou mais o volante, os nós dos dedos ficando brancos sob a luz trêmula dos faróis. A chuva engrossava, e a estrada parecia não ter fim.
Ariadne ajeitou-se no banco, olhando pela janela. Girou mais uma vez a argola no dedo. Lembrou-se do início do namoro com Roberto, do professor de tênis, da escolha pelo conforto financeiro que Roberto proporcionava, de ter de resistir à tentação novamente, pelo menos por um tempo…
Foi então que uma sombra atravessou o asfalto.
Roberto pisou no freio. Os pneus deslizaram no asfalto encharcado. O som de um impacto seco ecoando na noite.
Ariadne levou as mãos ao painel, sem soltar um grito.
O silêncio. A chuva, insistente, encobrindo tudo.
— Meu Deus, Roberto… o que foi isso?
— Não sei. Surgiu do nada.
— Será que foi um bicho?
— Talvez. Vou lá dar uma olhada.
Roberto levou a mão à maçaneta.
— Tá maluco? Não viu na televisão? Tem um serial killer atacando na região. Já matou várias pessoas na estrada e nos vilarejos ao redor.
— Só agora você me fala isso?
— Sei como você é. Poderia não querer vir.
— Meu Deus… mas e se atropelei uma pessoa? Ela pode precisar de socorro…
Ariadne virou-se para Roberto, prestes a falar, quando algo explodiu contra o vidro. O impacto seco reverberou no carro. O sangue se espalhou como uma mão vermelha escorrendo pelo vidro. Ela só conseguiu gritar:
— Meu Deus! Corre, Roberto! Corre!
Roberto engatou a marcha e pisou fundo. O carro disparou pela estrada.
Nenhum dos dois teve coragem de olhar para trás.
Liguei para meu cliente. Ele poderia ter uma ideia de onde Ariadne havia levado o marido para convencê-lo da resiliência do amor do casal.
— Sua amada foi viajar. O porteiro bebum me garantiu que saíram com malas grandes.
— Amada? Amada é o caralho! A desgraçada deve ter levado o cornudo para aquele abatedouro.
— Do que você está falando?
— Uma cabana que é da família há séculos — fez uma pausa, a voz carregada de rancor — Confesso: já comi ela lá.
Entregou direitinho o caminho até a tal cabana. Rico tem dessas: chamar de cabana o que, para mim, seria um casebre mofado, com cheiro de rato e umidade.
Achei que valia a pena arriscar; agora teria de encarar uma noite chuvosa. Avisei que cobraria um extra pelo serviço, desliguei o telefone e liguei o carro — mas não sem antes passar na barraca de cachorro-quente. Sempre tive queda por carne de procedência duvidosa. Às vezes, até prefiro. Carne só de primeira deixa o sujeito mal-acostumado, capaz até de broxar diante de uma estria, uma celulite. Deus me livre.
A estrada para a cabana estava realmente deserta, exceto por um carro abandonado no acostamento, no meio do caminho. Olhei para ele e pensei: sei como você se sente, companheiro.
A viatura rompia o silêncio da estrada, os faróis varrendo a pista molhada. Os pneus cortavam poças traiçoeiras, espirrando água para todos os lados. No banco do carona, o homem que perdera o cachorro murmurava palavras desconexas — uma espécie de oração para o pobre animal —, o que irritava o motorista fardado. A chuva dera uma trégua, e o policial já não via a hora de se livrar daquilo. Talvez o fizesse logo.
— Pobre Peralta… vou enterrar você cedinho. Já escolhi o lugar da sepultura.
— Sua casa não parece estar tão perto quanto o senhor falou.
— Isso acontece com quem é da região… a gente acha que tudo é logo ali. — Fez uma pausa, baixando o tom, quase cúmplice. — Mas me diga uma coisa… vocês já têm pista daquele assassino?
— Estamos trabalhando no caso. Mas, por enquanto, é tudo sigiloso.
O silêncio voltou, denso. Até ser quebrado pela voz exaltada do homem.
— Moço… pare o carro! Agora! — o dedo magro e longo apontava para frente. — Acho que vi o carro daquele desgraçado.
— Que desgraçado? — o policial estreitou os olhos.
— O assassino do Peralta. É ele, sim. Filho da puta! — Bateu no painel, com a testa colada no vidro. — Agora você me paga!
O policial manteve o olhar fixo no carro estacionado à frente da cabana. Ele tinha outros planos, mas valia tentar uma mudança de rumo. Não sabia dizer por quê, mas uma estranha calma o tomou. Aquilo poderia ser mais do que um simples atropelamento — talvez uma chance de resolver problemas maiores.
Adentrou o terreno, percorrendo o breve trilho de cascalho. Estacionou de ré, deixando o veículo pronto para a retirada rápida, como fora treinado.
— Espere aqui, entendeu? Não desça. Se fizer besteira, vai complicar ainda mais as coisas. — Aguardou o caroneiro concordar com a cabeça, o rosto banhado de raiva e lágrimas. Ajustou o boné, calçou as luvas e só então desceu da viatura.
A escuridão da noite engolia os sons, restando apenas o pingar irregular das copas molhadas das árvores. Aproximou-se do veículo parado em frente à cabana. O para-choque amassado denunciava o impacto. Também havia pelos e manchas de sangue grudados na grade frontal. O homem tinha razão.
Da janela lateral da cabana, um feixe de luz amarelada iluminava a noite vazia. O policial pousou a mão sobre o revólver. Subiu os degraus da varanda encharcada.
E bateu à porta.
— Você ouviu isso, Roberto? — Ariadne estava sentada na sala de TV, rolando distraída a tela do celular. O shortinho do pijama revelava as pernas longas, e a baby look esticava-se sobre o abdômen definido.
— O quê? — respondeu Roberto da cozinha, onde ajeitava uma carne na airfryer para o jantar.
— Acho que ouvi um carro estacionando na frente da casa.
— Não ouvi nada.
Bam, bam, bam!
Ariadne largou o celular no sofá, o rosto tenso.
— Eu disse! Estão batendo à porta. — Aproximou-se em passos leves até a cozinha, sussurrando: — Roberto… quem será a essa hora?
Ele ajeitou o avental, limpou as mãos no pano de prato e caminhou até a porta, olhos arregalados.
— Melhor não atender — cochichou Ariadne, colada ao ombro dele.
— Vou olhar no olho mágico.
Silêncio breve. O ar parecia mais pesado.
— E aí? — insistiu Ariadne.
— É um policial — murmurou. — Não devíamos ter fugido.
— Não tem jeito. Vamos ter de abrir a porta.
Os ouvidos de Roberto latejavam. O ar parecia faltar-lhe. Levou a mão à maçaneta, girou-a e abriu a porta, esforçando-se para parecer surpreso.
— Pois não?
Do lado de fora, o policial mantinha a aba do boné baixa. A voz saiu calma demais.
— Boa noite. Por acaso o senhor passou pela estrada hoje?
— É… bem… — Roberto pigarreou.
— Veja, senhor, minha pergunta é apenas retórica. — O policial deu um passo para trás, apoiando a mão no capô ainda úmido de chuva. — Notei que o motor continua quente.
— Sim…, sim, nós chegamos agora há pouco.
O policial inclinou-se, os olhos firmes, quase sorrindo.
— E, por acaso, não atropelaram nada pelo caminho? Talvez nem tenham percebido, com a chuva forte que caía…
— Batemos em algo, sim — adiantou-se Ariadne, a voz trêmula.
O policial a mediu de cima a baixo. O olhar demorou-se nas pernas à mostra pelo pijama curto, e o canto da boca se contraiu num quase sorriso que não tinha nada de simpático.
— Chegaram a parar para ver o que era? — perguntou, a voz arrastada, como quem já sabe a resposta.
Roberto pigarreou, tentando parecer firme:
— Não, senhor. Minha esposa ficou muito nervosa. Bem, ela pensou que poderia ser uma armadilha… ou aquele serial killer que anda por aí.
O policial ergueu uma sobrancelha, satisfeito.
— O senhor já olhou a frente do seu carro?
Roberto deu uma espiada. Sentiu-se tonto diante do estrago, dos pelos ensanguentados grudados à grade.
— Não tinha visto, policial. Então a gente atropelou um animal… é isso?
— Parece que sim. O senhor tem ideia de que atropelar um animal e abandoná-lo à própria sorte pode ser enquadrado como maus-tratos, sujeito a multa e até detenção?
Roberto sentiu a pressão aumentar. Por um instante, achou que aquilo poderia arruiná-lo. A solução surgiu clara, quase brutal. Poderia transformar aquela situação em um escape para seus desejos reprimidos.
Olhou para Ariadne. Aproximou-se de sua orelha e sussurrou a proposta, rápido, como quem age antes de se arrepender. Mais fácil no impulso, sem lhe dar tempo de julgar ou rir dele, do que expor o que carregava em silêncio há tanto tempo.
Ariadne arregalou os olhos, lançou um olhar para o policial alto e forte, levou a mão à boca… depois corou. Hesitou apenas um segundo antes de encarar Roberto e concordar. Havia medo no olhar, sim, mas por baixo dele ardia um brilho úmido de desejo.
O policial, alheio ao que se passava entre o casal, observava apenas a troca de olhares, como quem fareja algo sem compreender. Então, com a calma perturbadora de quem arrasta a presa para o abismo, disse:
— Venham, quero mostrar uma coisa.
Ariadne e Roberto, ainda atordoados pelo pacto silencioso que acabavam de firmar, seguiram o policial até a viatura. Seus corações batiam em descompasso, divididos entre medo e uma estranha excitação.
— Vejam. — O policial abriu o porta-malas com um rangido metálico.
O casal encarou o corpo contorcido e ensanguentado do cachorro. O pelo, empapado de sangue e chuva, grudado no revestimento do porta-malas. Ariadne apertou os lábios para conter o enjoo, mas algo ao lado do animal chamou sua atenção.
— O que… o que é isso? — disse, apontando para o objeto ao lado do corpo do cachorro.
— Ah, isso? — o policial sorriu de canto, ajustando um pouco a aba do boné. — Um taco de beisebol. Gosto de praticar esportes quando sobra tempo.
Ariadne recuou meio passo e sussurrou no ouvido de Roberto:
— Estou com medo…
— O que houve? — Ele tentou manter a calma, mas sentiu as fantasias obscuras se desfazendo.
O olhar de Ariadne grudou no objeto. Era como se um compartimento esquecido na mente tivesse se aberto: o perito da TV, a foto em preto e branco das vítimas, a fala seca sobre o taco de beisebol. Um frio percorreu-lhe a espinha.
— Roberto… aquele serial killer… ele usa exatamente isso para matar as vítimas.
O policial sorriu, levantando devagar o taco.
— Querem saber como jogo meu esporte preferido?
A batida veio de baixo para cima. O taco encontrou o queixo de Roberto num estalo seco, arrancando-lhe o ar e as forças. Roberto tombou de lado, zonzo, os olhos turvos fitando Ariadne. Por um instante, entendeu tudo: seu desejo secreto não levara à reconciliação, mas direto ao inferno. Abriu a boca para falar, mas o segundo golpe desceu pesado, rachando-lhe o crânio antes que pudesse soltar uma palavra.
Ariadne tentou correr, mas mal deu dois passos. O policial já estava sobre ela. O taco atingiu seu tornozelo, quebrando-o. Caiu gritando, arrastando-se em desespero. Em seguida, ele golpeou seu rosto várias vezes, reduzindo-o a uma massa de olhos, nariz, dentes e sangue.
O caroneiro da viatura não conseguiu ficar parado. Abriu a porta do carro e avançou cambaleando, a voz embargada:
— O que está acontecendo aqui? — O olhar percorreu os corpos retorcidos no chão e o sangue respingado no pijama de Ariadne. — Meu Deus… o que você fez, seu animal?
O policial girou devagar, sem pressa, um meio sorriso na boca.
— Calma, titio. Toma. — Atirou o taco em sua direção. O reflexo foi automático: o homem agarrou o objeto, atônito.
— Agora é você quem parece culpado. — A voz soou quase divertida.
— Maldito… — a voz dele saiu rouca, mais raiva que medo. As mãos tremiam segurando o taco.
O estampido do revólver cortou a noite. Depois outro. E mais um. O corpo do homem tombou de costas no cascalho, o taco ainda preso entre os dedos, como se tivesse tentado lutar e falhado.
Pedi uma cerveja ao Peixoto. Lia o jornal, aguardando a chegada do meu cliente. A reportagem das páginas policiais dizia que fora finalmente encontrado o assassino serial que atacava numa região inóspita nos arredores de Curitiba. Um bom policial, que se preocupara em descobrir quem atropelara um pobre cachorro, chegou ao local onde o psicopata acabara de matar um casal de curitibanos que havia ido passar férias em sua cabana.
Enquanto lia, lembrei da forma estúpida como me perdi no caminho até lá — graças às informações desencontradas do meu cliente e ao pneu furado numa poça d’água que escondia um buraco traiçoeiro.
Quando cheguei, havia uma miríade de policiais, repórteres e até o rabecão do IML. Graças a um velho conhecido e, claro, algumas cédulas passadas discretamente, consegui arrancar o anel da mão de Ariadne. Por sorte, o rosto dela estava coberto. Estou cansado de ver a morte de perto.
Meu cliente chegou. Coloquei o anel sobre a mesa e pedi mais uma cerveja. A raiva toda parecia ter se dissipado. Na verdade, ele agarrou o anel como se fosse a última lembrança viva de uma mulher por quem fora apaixonado, mas que o relegara à dor humilhante da rejeição.
Meu copo estava se esvaziando de novo. Precisava enchê-lo antes que ficasse parecido demais com a minha vida.