Maicol Cristian

Boca Maldita

Nada no mundo exerce mais poder sobre um homem do que um belo e exibido tufo de pentelhos negros. E era isso que eu vislumbrava quando ela descruzou as pernas. Imaginei imediatamente tudo o que eu poderia fazer naquele aconchego e não tive dúvidas de que aquele ninho já abrigara mais machos do que cracudos na fila da sopa.
Nicole. Safada. Sabia muito bem como fisgar um homem.
Não era Sharon Stone. Jogava melhor. Puta, sem dúvida. Mas não das baratas. Apesar da ausência de lingerie, dinheiro não parecia ser problema — e, dada a minha condição, isso só a tornava mais atraente. As roupas eram caras, daquelas que não se encontram em lojas-âncora de shopping. Quarentona, gostosa, negra, consciente do corpo e das armas que carregava. Eu já estava quase rendido quando decidi quebrar a encenação.
— Certo, vamos acabar com esse teatrinho. O que a trouxe aqui?
— O sumiço de uma amiga. Procurei a polícia. Nem levantaram da cadeira.
— A polícia não dá a mínima pra prostitutas — respondi, acendendo outro cigarro. — Nem pra elas, nem pra você, nem pra mim.
— Não precisa ser tão cínico. Estou cansada de ser tratada assim. Sou puta, mas sou gente. Vai ouvir ou não? — disse, fazendo leve menção de se levantar.
— O que a faz pensar que ela sumiu? Pode estar se divertindo em algum bacanal, numa festinha de playboy.
— Não. Ela jamais faria isso. Não sem me avisar. Algo aconteceu — respondeu, recompondo-se na cadeira.
— E quem é essa amiga, afinal, para você estar tão preocupada?
— O nome dela é Jair. Mas no ofício atende por Pamela. Travesti. Trabalhamos juntas na boate Deusas. Conhece? — perguntou, cruzando as pernas de novo.
NĂŁo sei o porquĂŞ, mas algo me dizia que aquilo nĂŁo ia acabar bem. O ar parecia impregnado de merda. Aquela mulher deliciosa, puta cara, procurando um travesti chamado Jair. Meu sexto sentido gritava que aquilo fedia.
Mas a carteira vazia, o tanque vazio e a geladeira vazia enchiam-me de convicção. Aceitei o caso. Pedi uma foto de Pamela. Foi a partir dali que tudo desandou de vez.
Sacou o celular e o colocou na minha mĂŁo. Reparei nos dedos longos, nas unhas bem cuidadas, na pele macia. Minha mente suja a imaginou segurando algo mais do que o aparelho. Mas a imagem de Pamela atravessou meus pensamentos. E tudo parou.
Quase caí da cadeira. Pamela era bonita demais. Sexy demais. Mulher demais. Para ser um travesti. Não consegui disfarçar a surpresa. Nem a excitação.
— É isso mesmo, detetive — ela sorriu com veneno. — Essa é Pamela. Sempre causa frisson nos homens. E, acredite, é ainda mais gostosa ao vivo.
Por algum motivo que não consegui identificar naquele momento, o primeiro ímpeto foi esquecer minha condição financeira e desistir daquele caso. Mas o fascínio falou mais alto. Aceitei.
Antes de mostrar mais uma vez seus atributos e sair rebolando do meu escritĂłrio, Nicole pagou o adiantamento exigido e enviou a foto de Pamela para o meu celular. E mais algumas. Prometemos manter contato. Em breve.


A cabeça rodopiava. Aquele dia de trabalho havia acabado. Vesti o paletó surrado e saí, descendo as escadas. Precisava de um trago. Baixar a poeira.
O sol ainda não tinha se posto e o Bar do Ernesto estava meio vazio. Pedi um chope e um sanduíche de mortadela. Peixoto trouxe o pedido rápido e ficou por perto, como sempre, farejando o caso em que eu estava metido.
Entre um gole e outro e após algumas mordidas no saboroso sanduíche, não resisti e tirei o celular do bolso. Comecei a deslizar o dedo pela tela, passando foto por foto de Pamela. Tive um troço quando a vi de biquíni. Aquilo não era deste mundo. Peixoto corroborou tudo o que eu pensava.
— Puta que pariu, doutor! Quem é essa gostosa? Com uma mulher dessas um homem não precisa de mais nada nesta vida.
— Está sumida, Peixoto. Fui contratado para encontrá-la.
— Olha, doutor, vou confidenciar, sou um homem religioso, fiel à minha velha, mas, sinceramente, se uma dona dessas me desse bola, eu largava tudo.
— Traz mais um chope, Peixoto. Tô precisando.
Relutante, tirou os olhos do meu celular e foi buscar o chope. Quando voltou, nĂŁo resisti.
— Só tem um detalhe: a gostosa é um traveco.
— O quê? Tá de brincadeira comigo?
— Não, Peixoto. É isso mesmo que você ouviu.
Peixoto fez o sinal da cruz e, atônito, foi atender outro cliente. Quando retornou, alisou o cabelo oleoso para trás e se aproximou com cara de conselheiro.
— Vá devagar com isso, doutor. Um negócio desses — apontou com a cabeça para a foto que eu ainda admirava — pode acabar com a vida de um homem.
Eu sabia exatamente o que ele queria dizer. Mas nĂŁo havia como voltar. SĂł dava pra seguir em frente.


Foi o que fiz. Terminei o sanduíche, sorvi o chope e segui para a boate Deusas — um puteiro caro, onde o sujeito podia escolher desde universitárias que passavam horas na academia até coroas experientes, muitas vezes mais belas e desejadas.
Um painel de neon, além do nome do estabelecimento, garantia que aquilo era a porta para satisfazer os desejos mais recônditos. O armário que guardava a entrada era um velho conhecido e não foi obstáculo para o meu ingresso na casa de tolerância, como diria meu avô.
O ar estava pesado de tensão sexual. Coroas engravatados derretiam-se por jovens que poderiam ser suas filhas, ou até netas. O ambiente era aconchegante, equilibrado entre luz e sombra. Atravessei o salão e fui até o bar. O barman sempre tem as informações mais quentes. Conhece todas as putas, seus segredos, seus deslizes.
— Uísque, por favor — falei alto, tentando vencer o som ambiente.
— Cana?
— Cachaça? Não. Uísque.
— Tá se fazendo de engraçadinho? Perguntei se você é cana, tira, polícia.
— E por que essa pergunta?
— Porque não me enganam. Tá tatuado na sua cara que você é cana.
— Como é seu nome, irmão?
— Pedro.
— Pedro do quê?
— Pedro. Só Pedro.
— Pedro, você é esperto. Gosto de caras espertos. Não sou cana, mas sou detetive.
— Porra, meu! Achei que isso só existisse em filmes ou naqueles livrinhos baratos de banca.
— Pois se enganou, Pedro, só Pedro. Estou aqui em carne e osso — falei, abrindo o paletó para enfatizar.
Ele serviu o uĂ­sque. Paguei, passando junto uma grana extra para soltar sua lĂ­ngua.
Beberiquei o uísque, observando o salão. Não vi Nicole, o que me deixou desconfiado. Estranhei também nenhuma lady tentar arrancar minha grana. Talvez eu tivesse mesmo cara de encrenca. Enquanto secava o balcão, molhado pelo suor dos copos, Pedro me olhava de esguelha. Não resistiu à curiosidade.
— Qual é a bronca?
— Pamela.
A palavra caiu como gasolina em brasa. O sujeito empalideceu, tremeu, enfiou a mĂŁo no bolso e jogou as notas amassadas de volta.
— Tome seu uísque e dê o fora.
E foi atender uns engravatados que pediam bebida para as putas da mesa ao lado.
Continuei tomando meu uísque, esperando o sujeito esfriar a cabeça para tentar voltar à carga. Fiquei ali, sentado, girando o copo, sorvendo o líquido, enquanto Pedro servia seus clientes, secava copos, limpava o balcão — tentando se manter ocupado.
— Pedro, hei!
— Que foi? Já acabou?
— Sim. Pode servir mais um pro seu cliente preferido?
— Eu não falei para você dar o fora daqui?
— Calma, meu irmão. Vamos conversar mais de perto — falei, levando a mão ao bolso do paletó. — O problema foi estar meio bêbado e não perceber o sinal que Pedro, só Pedro, fez para os leões de chácara.
Só tomei consciência disso quando acordei do lado de fora da Deusas, junto à sarjeta, com a cabeça latejando e um cachorro urinando no meu sapato. Uma costela parecia quebrada e eu mal conseguia respirar.


Lutando para conseguir um pouco de oxigênio, enquanto enxotava aquele pulguento, senti uma presença às minhas costas. Pensei que iria tomar outra sova. Virei-me com dificuldade e encontrei lindas pernas, morenas e bem-torneadas. Era algo realmente de primeira classe.
— Tá vivo?
— Não sei por quanto tempo.
— Quer ajuda?
— Não tem medo de me ajudar, depois do que fizeram comigo?
— Cale a boca e me dê a mão. Estamos só nós aqui.
Levantei-me, claudicante, apoiei-me em seu ombro e seguimos até o carro dela.
Era um belo carro. Não me surpreendia que uma mulher daquelas tivesse tomado esse rumo. Ganhava muito bem, com certeza. Meu carro ficaria para o dia seguinte — eu mal conseguia ficar de pé, quanto mais dirigir.
Seguimos pelas ruas molhadas de Curitiba. Eu tentava não gemer a cada solavanco. Olhava de lado para a minha motorista, com descrença. A noite fora implacável demais para confiar na bondade de uma moça bonita e solícita.
Chegamos ao apartamento dela. Prédio do centro, velho, mas bem cuidado. Por dentro, o apezinho surpreendia: pequeno, arrumado, confortável. Ela sabia gastar o que ganhava.
Instalou-me em seu sofá e foi até o banheiro buscar algo para me limpar e fazer curativos.
— Moça, como é seu nome?
— Verdadeiro ou de guerra?
— Desculpe, moça, não estou em condições de escolher.
— Maria.
— Então, Maria, agradeço muito o que está fazendo por mim. Mas, sinceramente, não entendo por que está correndo este risco.
— Não acredita na bondade? Preciso de um motivo para ajudá-lo? — ela dizia isso enquanto passava uma espécie de gaze com álcool sobre meus machucados.
— Peço desculpas, Maria, se pareço mal-agradecido. Mas você é bonita e esperta demais pra achar que vou cair nessa.
— Pamela.
— O que tem a Pamela?
— Eu ouvi sua conversa com o Pedro.
— Sim, estou atrás dela. Ela também é sua amiga?
Arrependi-me da pergunta. Seu olhar fuzilou-me e seus dedos apertaram ainda mais minhas feridas, com a desculpa de limpá-las.
— Aquela vagabunda roubou meu namorado — cuspiu as palavras com ódio.
— Namorado?
— Sim. Puta também tem namorado — agora os dedos se encravavam na minha carne combalida.
— Ei, calma! Não precisa descontar nos meus machucados.
— Desculpa… — soprou a ferida onde havia passado a pomada.
— Tá tudo bem. Mas isso não explica você estar me ajudando.
— Bem… — baixou os olhos, escolhendo as palavras — acabei de descobrir onde a desgraçada tá se escondendo.
— Ela tá se escondendo? Por quê?
— Por passar a perna na Nicole. As duas roubaram o dono do Deusas, mas Pamela foi mais esperta. Ficou com a grana e deixou a outra chupando o dedo.
— Quer dizer que além de irresistível, Pamela também é esperta?
— Irresistível é o caralho — Maria voltou a apertar minhas feridas, enfaixando minhas costelas.
— Ei! Desse jeito vou ter que procurar um hospital!
— Também tá babando por aquele traveco? Era só o que me faltava: mais um encantado por aquele rabo.
Com passos firmes e resolutos, ela deixou a sala e foi ao seu quarto. Voltou com travesseiro, lençol e cobertor.
— Toma, pode dormir aqui no sofá. Toma esse analgésico; vai te fazer bem.
— Antes da gente dormir, pode me dizer onde a Pamela se meteu?
— Ela está num desses prédios velhos aqui do centro, próximo à Boca Maldita.
— Como você descobriu?
— Um cliente habitual lá da Deusas comentou comigo, logo depois de me comer, que havia topado com ela por acaso nesse muquifo que te falei. Se eu tivesse uma arma, acabaria com ela.
Tomei remédio, Maria apagou as luzes e eu também apaguei.


Acordei já à tarde, três horas passadas. Maria estava de calcinha, preparando a mesa. Uma visão e tanto. Corpo esguio, mechas loiras caindo no rosto. Difícil acreditar que eu tinha dormido no sofá dela.
Meus pensamentos foram cortados por uma mensagem de Nicole no WhatsApp. Queria saber se já tinha alguma pista do paradeiro de Pamela. Respondi apenas: “tá quente, logo terei novidades”.
Após o almoço, Maria tomou um banho demorado, preparou-se para a noite que a aguardava e fomos até a Deusas — ela para trabalhar, eu para pegar meu carro.
— Depois que tudo isso acabar, passe lá em casa, já que aqui você não é bem-vindo. Quem sabe eu nem te cobre — disse, beijando-me no rosto.
Arranquei o carro. A noite começava a cair e eu tinha uma missão.
Estacionei em uma rua do centro, próxima ao endereço que Maria me dera. O prédio não tinha portaria. Subi a escadaria. Gemidos atrás de portas, cheiro de cigarro barato e maconha. Um senhorzinho, com o rosto colado a uma fresta, tentava barganhar mais uma trepada no fiado. No sétimo andar, o ar trazia feijão requentado misturado a perfume barato.
Apartamento 802. Esse era o endereço. Eu tinha duas opções: bater à porta e ela desconfiar, e não abrir. Ou fazer o que um detetive mais faz: esperar a chance de ouro, quando resolvesse abrir sozinha. Optei pela segunda alternativa.
Depois de uma hora escorado junto à parede imunda do corredor, ouvi barulho de chaves junto à fechadura. Ela abriu a porta, com um saco de lixo na mão e dirigiu-se ao depósito de lixo do andar, deixando a porta entreaberta. Quando voltou, eu já estava sentado na poltrona rota de sua sala.
De pés descalços, usava um vestido curtíssimo. O corpo exalava sensualidade: pernas incríveis, pele macia e malhada. O decote deixava escapar peitos enormes. O rosto, lindo e assustado, não teve ímpeto de fugir. Fechou a porta atrás de si e ficou tentadoramente à minha frente. Ali estava o fruto febril dos meus desejos desde a primeira foto.
— Foi o Jeremias que o mandou?
Com medo de gaguejar, respondi:
— Jeremias? Quem é Jeremias?
— Não se faça de sonso. O dono da Deusas.
O olhar dela me atravessava.
— Não conheço esse sujeito. Foi outra pessoa. Uma que você passou para trás.
— Garanto que não usava calcinha quando o visitou.
— Deu pra ver que vocês se conhecem bem.
— Que lorota ela contou pra você?
— Disse que você estava sumida; estava muito preocupada. Contratou meus serviços.
— Vadia. Me devia uma grana ferrada. Aproveitei pra cobrar a conta. Como me achou? — ela parecia mais relaxada, sabendo que não fora o Jeremias quem me contratou.
— Ela enviou algumas fotos suas e comecei a investigar.
Aproximou-se e sentou na guarda da poltrona ao lado. As pernas bronzeadas encostaram nas minhas.
— E você saiu por aí, mostrando minhas fotos na rua até me achar?
— É o que um detetive faz, não é?
— Não sei, nunca estive com um detetive antes. E você gostou?
— Do quê?
— Das fotos — sua voz era quase um sussurro.
— Confesso que fiquei curioso. Nunca vi ninguém assim.
— Apenas curioso, detetive? — agora sentava no meu colo.
— Confesso que fiquei louco por você.
— Posso saber como aquela vadia pagou por seus serviços?
— Grana. Nada mais.
— Posso pagar o dobro que ela lhe pagou — agora estava totalmente sobre mim. Sua boca roçava meus lábios.
Daquele ponto em diante não resisti mais. Nossos olhares se encontraram e sua boca quente invadiu a minha. Ela parecia querer devorar-me. Já não pensava mais. Eu a queria inteira, todinha para mim.
Estava entregue ao desejo, a ponto de explodir, quando a imagem de Peixoto me assolou, como um demônio, dizendo que aquilo podia acabar com a vida de um homem. Lembrei do tufo de pentelhos negros de Nicole, das pernas longas e macias de Maria e, em pânico, sem saber mais quem eu era, empurrei Pamela do meu colo, jogando-a ao chão.
Ela estava assustada, prostrada no chĂŁo. NĂŁo entendia nada. Nem eu.
Saquei o Taurus .38 e dei três tiros no seu peito. O sangue misturou-se ao silicone que escorria. No ar, o cheiro metálico do vermelho fundiu-se à pólvora. No meu corpo, as lágrimas confundiam-se com o gozo.
Saí correndo do apartamento, deixando para trás a beleza impossível e perturbadora de Pamela.
Acendi um cigarro e segui pela Boca Maldita, alheio Ă  garoa fria, tĂ­pica de uma noite curitibana.

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